A Mitologia na construção da Psicanálise

por Nadia Lappas | Psicanalista       

Os seres humanos sempre foram criadores de mitos. A necessidade de contar histórias é tão antiga que muitos autores consideram que ela deve ter nascido com o próprio homem, pois somos criaturas em busca de sentido.

Existe algo de poderoso nos mitos que transcende tanto a razão, quanto as fronteiras de uma cultura.

Para Jung, os mitos são projeções do inconsciente coletivo, uma espécie de sonho comum da humanidade. Os temas das histórias mitológicas, que se repetem em qualquer época e lugar, são chamados de arquétipos. Para Jung, os mitos dão voz às verdades do nosso inconsciente, aos deuses, deusas e heróis da mitologia; corporizam aspectos da criatividade, inteligência, dor, alegria, agressividade, êxtase etc.

Quando falamos em mitos, falamos em símbolos que não possuem um significado comum, particular, exclusivo e, justamente por isso, atravessam o tempo e a cultura.

Há uma relação, uma compreensão da presença dos conteúdos mitológicos na construção do pensamento de Sigmund Freud. O uso da mitologia como recurso na construção do pensamento freudiano assumiu relevância no desenvolvimento de vários estudos psicanalíticos desde a sua origem.

Possivelmente uma maneira encontrada por Freud para demonstrar que suas descobertas estavam além da singularidade de cada paciente, se tratavam também das grandes questões humanas. Dessa forma, o mito assume a expressão da relação entre o singular e o universal.

Freud, enquanto pesquisador, utiliza os preceitos mitológicos para explicar conceitos, buscando a construção do saber psicanalítico.

A mitologia não obedece a regras de tempo, espaço e ação, e tal qual a Psicanálise que pontua que os pensamentos, sonhos, atos psíquicos podem deslocar-se, condensar-se e por estarem ligados a conteúdos inconscientes, possuem também um caráter atemporal.

Freud entrou em contato com as fantasias inconscientes de suas pacientes e, em correspondência com Fliess, relata suas percepções e coloca então a relação com o mito Édipo, que posteriormente dará nome à pedra angular de sua teoria. Freud, ao descobrir o Complexo de Édipo, simbolizou o seu próprio complexo, assim como o universalizou e também estabeleceu as diferenças entre a realidade psíquica e material, apontando o inconsciente, uma das estruturas essenciais de sua teoria – aqui Freud faz referência ao mito Édipo, do dramaturgo Sófocles, uma das mais emblemáticas histórias do teatro grego.

A linguagem do mito guarda relações profundas com o funcionamento do inconsciente, uma vez que não há uma lógica linear, o mito é circular, é universal, aparece com diferentes nuances, mas com uma profunda similaridade em diferentes culturas, em diferentes épocas e fala sobretudo do que há de mais profundo no ser humano: sua estruturação e funcionamento psíquico.

São várias as passagens na obra de Freud em que o autor e pai da Psicanálise faz referência à mitologia. Dizem que uma das estátuas preferidas de Freud era a da deusa Atena, que ficava à frente em sua escrivaninha, fora a Esfinge, uma estatueta de Eros, uma peça em bronze de Isis em meio às centenas de obras que colecionava, uma paixão também cultivada por sua filha mais velha, Mathilde.

Os mitos não são só histórias antigas de espanto e glória, falam, na sua gênese, acerca de nós.

No caminho da compreensão da constituição do indivíduo e do funcionamento do aparelho psíquico, Freud em Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914), mais uma vez utiliza um recurso mitológico para falar de suas descobertas – nesse mito complexo, dois aspectos chamam nossa atenção: o espelho formado pela água límpida da fonte, no qual Narciso contempla e se apaixona pela sua imagem e sua metamorfose, transformação na flor branca e amarela que floresce na primavera, a flor de narciso.

Em sua teoria das pulsões, Eros e Thanatos, ambos da mitologia grega, são mitos usados como demonstrativos de sua teoria, pulsão de vida e pulsão de morte, mitos capazes de gerar subjetivação.

A mitologia também consagra os heróis, além de seus deuses . Otto Rank em seu livro O mito do nascimento do herói nos relata que civilizações atribuíram traços fantásticos aos heróis, aproximando o mito do herói ao mecanismo descrito por Freud como fantasias.

Para Lacan, 1987, o mito confere uma dinâmica discursiva a alguma coisa que não pode ser transmitida na definição da verdade, pois a verdade não pode apoiar-se senão sobre si mesma, não pode ser “toda” dita.

Portanto, Freud abre caminho para um amplo debate entre psicanálise e mitologia, assim como o fez entre a psicanálise e religião, psicanálise e antropologia, literatura, arte … e parece não ter fim. E talvez não tenha.

Freud mostra que a Mitologia sobrevive, porque os mitos estão investidos em algo vivo que reside no ser humano.

 

 

 

 

 

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