Quando a arte ousa imitar a vida

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por Laura Martins | Psicanalista

Há pouco mais de um ano, o filme “Coringa” entrou em cartaz para desconstruir a dualidade existente entre o bem e o mal, a luz e a sombra, o herói e o vilão. A imortalidade dos quadrinhos deu lugar à humanização de uma figura, ora sensível e comum, ora cruel e vingativa, numa disruptura constante em cena.

É um filme realista, contado sob a visão de um personagem com distúrbios não tratados, originados da construção de seu mundo interno somados à sua percepção do ambiente externo em que vive. Arthur Fleck, o protagonista desta obra, não era visto, não era ouvido, não se sentia parte do todo. De uma série de acontecimentos foi perdendo o pouco que tinha, desde a pseudo-ajuda psicológica e remédios até o emprego e relacionamento materno. E no auge da fusão entre essas perdas, somando-se a violência e indiferença constante de seu meio, houve a ressignificação de sua vida.

Os homens considerados “maus” têm a coragem de realizar o que os “bons” apenas mantêm na esfera do desejo.  Coringa, como quase todas as pessoas do planeta, interioriza em maior ou menor grau, sentimentos relacionados à injustiça, ao descaso e ao abandono, gerando desejos inconscientes que estão reprimidos dentro de si. A diferença que existe entre a intenção e a execução está na presença de um ego que, quando fortalecido, consegue administrar de maneira saudável a relação entre o querer e o poder. Quem assistiu às cenas onde prevalece a Lei de Talião pode ter sentido um certo gozo identificado pelo senso de justiça. Assim, a arte possibilita que o espectador fantasie em vez de realizar.

Em uma Gotham, projetada nos grandes centros atuais, onde há violência gratuita e o mal é banalizado, é de se esperar que mais e mais identificações surjam dando apoio ao então líder dos pobres e oprimidos. Porém, sua intenção talvez não tenha sido mobilizar esta massa, mas sim, encontrar neste mundo, um meio de ser ouvido e ter a atenção que toda criança interna clama de seus pais.

Quando a arte ousa imitar a vida, como em casos como o de Arthur Fleck, cada vez mais comuns nos dias atuais, a psicanálise pode auxiliar com o papel conciliador entre seu universo e o meio. Permitindo ao indivíduo ser  ouvido pelo outro e por ele mesmo havendo a possibilidade da ressignificação essencial para que seja possível seu reconhecimento na sociedade em que vive. E quando há patologias mais sérias, como as enfrentadas pelo personagem, é de extrema importância o acompanhamento psiquiátrico que, juntamente com o atendimento analítico, corroborarão para que se tenha a possibilidade de encontrar outro sentido para sua existência, permitindo a experimentação do bem-estar, da autoconfiança e da paz, tão importantes para uma vida plena.

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